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Um pássaro sem poiso

Palavras soltas, livres, voando por aí

Um pássaro sem poiso

Palavras soltas, livres, voando por aí

20.10.20

Chovem lágrimas


Isa Nascimento

Oiço a chuva lá fora

E deixo-me embalar por ela,

Num misto de nostalgia e saudade

Entregando-me à preguiça e à inércia.

 

O som das gotas nos degraus metálicos

Das escadas das traseiras

Ecoa no espaço e no tempo

Entoando prantos cansados.

 

Um cântico sereno, reconfortante.

De sábias vozes ancestrais

Falando baixinho comigo

Revelando segredos antigos.

 

Por ali fico, escutando-as,

Rindo e chorando só,

Numa solidão apaziguante

Minha amiga e confidente.

 

Outubro de 2020

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19.10.20

Na paragem de autocarro | conto


Isa Nascimento

Clara estava sentada na paragem de autocarro. A mesma paragem de sempre, à hora de todos os dias. À tarde também era assim. Regressava a casa à mesma hora, apanhando o autocarro na mesma paragem onde já estavam à espera as mesmas pessoas do dia anterior. Sempre a contrarrelógio. A carrinha do colégio também chegava sempre à mesma hora e ela não podia atrasar-se, caso contrário levariam as suas filhas de volta para o colégio e ela não tinha carro para as ir buscar. Era um pesadelo quando isso acontecia. Mas o pior, o que mais a angustiava, era ter de justificar o seu atraso ao marido.

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- Porque é que chegaste atrasada? Não sabes que cada hora extra no colégio nos custa uma fortuna?

No passado tentara argumentar, justificando-se com o atraso do autocarro ou com um imprevisto no seu trabalho, mas quase sempre resultava no agravamento dos impropérios que ele lhe dizia. Não adiantava. Ficava desvairado nessas situações, com vontade de a esbofetear.

Nunca o tinha feito, bater-lhe. Sabia que era a única coisa que a Clara não suportaria. Tolerava as injúrias, as acusações, as ameaças, mas nunca toleraria a agressão física.

Até àquela altura ela tinha aguentado ouvir sem ripostar e ele tinha-se refreado de lhe bater. Mas depois do que havia acontecido na véspera, questionava-se se valeria a pena continuar a aguentar.

Sentia-se especialmente cansada naquele dia. Aliás, levantara-se já cansada. Não tinha dormido bem. Pensara toda a noite na proposta de trabalho que a Antonieta lhe tinha feito.

A Antonieta era uma mulher empreendedora. Herdara a empresa de construção civil do pai, que morrera prematuramente e sem aviso prévio.

O irmão mais velho, advogado, queria vender a empresa. Em jovem era obrigado a ir ajudar nas obras durante as férias. Odiava aquilo, nunca tinha gostado de sujar as mãos nem de andar no meio do pó e do entulho. Essa obrigação roubava-lhe tempo para a leitura. Tinha noção de que podia ter os livros que quisesse graças às obras, era daí que vinha o dinheiro, mas era um verdadeiro suplício. Acabava por só poder ler à noite, quando ia para a cama, mas deitava-se tão cansado que adormecia muitas vezes logo após uma ou duas páginas. Quando o cansaço não o vencia, dormia pouco para conseguir satisfazer a sua insaciável vontade de ler. Andava mais cansado durante as férias do que durante o período de aulas.

Por tudo isso não estava disposto a abdicar da sua carreira para dar continuidade ao negócio da família. Sabia que era isso que todos esperavam dele, afinal, era o “homem” da família, o primogénito. Era a ele que cabia a responsabilidade de garantir o sustento da mãe, que toda a vida fora dona de casa, e da irmã, ainda a acabar o ensino secundário.

Contudo, não fora capaz. Tinha consciência de que acabaria por levar o negócio à falência por falta de conhecimentos e de gosto para o gerir de forma competente. Achava que o melhor seria mesmo vender a empresa.

Ao contrário, sendo menina, a Antonieta não era obrigada a ajudar nas obras. Naquela altura era assim, os rapazes tinham de ajudar nos trabalhos que exigiam esforço físico, enquanto as raparigas ficavam a ajudar a mãe para aprenderem as artes de uma dona de casa prendada. Mas a Antonieta não gostava mesmo nada de ficar em casa nas férias. Não tinha jeito para bordar nem para fazer tricô. Ajeitava-se a cozinhar e ajudava sempre a mãe a limpar a casa, normalmente ao fim de semana. Enquanto o pai e o irmão iam à pesca, ela e a mãe preparavam a casa para mais uma semana. Reuniam-se os quatro apenas ao domingo, para cumprirem o tradicional ritual do almoço de domingo em família. A mãe cozinhava com todo o seu amor e carinho. A Antonieta punha a mesa (às vezes o irmão ajudava) e o pai lia o jornal enquanto esperava. Tudo aquilo lhe parecia muito injusto, mas hoje fala com saudade desses almoços. Eram outros tempos.

Apesar da sua obrigação de ajudar a mãe nas tarefas domésticas, a Antonieta arranjava sempre forma de ir algumas vezes com o pai para o escritório, onde adorava passar as tardes, assistindo às reuniões com os arquitetos, engenheiros, fornecedores e mestres de obras. Só homens. No negócio do pai havia apenas uma mulher, a sua secretária. Acha que era por isso que o pai não gostava de a levar consigo. Dizia que não era lugar para uma menina.

Contudo, já nessa altura se revelava o carácter forte da Antonieta, que lá ia conseguindo convencer o pai a levá-la para o escritório. À medida que foi crescendo, essas visitas ao trabalho do pai durante as férias foram-se tornando normais. Já ninguém estranhava vê-la por lá. Mantinha-se a um canto, calada, desenhando em qualquer folha que encontrava, sem nunca deixar de ouvir o que se passava à sua volta.

Aos dezassete anos já sabia tudo o que era preciso saber sobre licenciamento e aprovação de obras. Sabia o que fazia cada um dos funcionários da empresa e nutria um grande afeto pela secretária do pai, a única pessoa que se dava ao trabalho de responder às suas perguntas e esclarecer as suas dúvidas.

Acompanhava frequentemente o pai na escolha dos materiais para os acabamentos das cozinhas e das casas de banho. Era ainda adolescente, mas o pai já confiava no seu gosto e decidia muitas vezes levando em conta as sugestões da filha.

Quando a Antonieta decidiu que queria estudar engenharia civil, ninguém se surpreendeu. Ainda assim, muita gente tentou dissuadi-la.

- O que vais tu fazer num mundo de homens?

- Engenharia… também dá para dar aulas, não dá? Serias uma boa professora…

- Com notas tão boas, porque não vais antes para medicina?

Mas ela não queria ensinar, queria criar. Não queria cuidar, queria construir. Estava decidida a seguir engenharia civil.

Tudo tinha sido tão simples e claro até àquele dia... Estava na escola quando o pai teve um ataque cardíaco fulminante, durante uma vista a uma obra. Chamaram uma ambulância, mas chegou ao hospital já sem vida.

A Antonieta nem sequer tinha podido despedir-se dele. Não conseguia aceitar. Não era justo. O pai ainda era novo e ela também. Precisava dele, como pudera ele abandoná-la assim, tão cedo e tão de repente? Não se conformava.

Se não fosse a mãe precisar muito do apoio dela, a Antonieta teria, provavelmente, caído numa profunda depressão. Mas a mãe precisava mesmo dela. Com a morte do marido tornara-se a “patroa” e estava aterrorizada, sem saber o que fazer.

Depois de trinta anos de vida doméstica, dedicada à casa e à família, não tinha qualquer noção de como funcionava o negócio da construção civil. Em casa, o marido nunca partilhara informações de trabalho. Passava pouco tempo com a família e recusava-se a contar o que quer que fosse sobre a empresa. Se havia problemas, deixava-os na obra ou no escritório. À mulher entregava apenas o dinheiro necessário para gerir a casa.

O desespero em que viu a mãe obrigou a Antonieta a ultrapassar o seu próprio desgosto.

Com o irmão não podiam contar. Estava em início de carreira, tinha casado e já havia um bebé a caminho. Ele não queria agarrar na empresa do pai e elas não tinham o direito de o pressionar.

Assim, aos dezoito anos, a Antonieta completou o secundário e desistiu da sua licenciatura para ajudar a mãe a gerir o negócio. Havia duas obras em curso. Um prédio quase concluído e já à venda e outro na fase inicial de fundação. Apesar de se encontrar numa situação financeiramente estável, a empresa rapidamente entraria em falência se os compromissos bancários não fossem cumpridos e as faturas aos fornecedores não fossem pagas dentro dos prazos. Ia todos os dias com a mãe para o escritório. Contudo, alguns meses depois, a mãe já só a acompanhava duas ou três vezes por semana, até que deixou de ir.

A mãe da Antonieta não conseguiu aprender o negócio. Sentia-se desalentada e era incapaz de manter uma posição firme nas suas decisões. Era facilmente influenciada e manipulada pelas pessoas em quem confiava e até mesmo por alguns dos fornecedores. Rapidamente percebeu que o melhor era delegar as suas responsabilidades na filha. E foi assim que, aos dezanove anos, a Antonieta se tornara gerente de uma empresa de construção civil.

Uma jovem, sem formação superior, num negócio eminentemente masculino, a liderar homens que tinham a idade do seu pai.

Nem pensava nisso na altura. Tal como deixara de pensar na sua licenciatura.

Limitava-se a seguir em frente, a garantir que tudo reentrava nos eixos e que todos os compromissos eram cumpridos atempadamente. Vivia em “modo automático” e não perdia tempo em reflexões.

Contudo, alguns anos mais tarde percebeu que a sua condição de mulher, jovem e sem formação superior, lhe dificultava muitíssimo a já árdua tarefa de gerir uma empresa do setor da construção civil. Resolveu então regressar aos estudos. Demorou oito anos até conseguir terminar a sua licenciatura em engenharia civil, no Instituto Superior Técnico, com uma “sofrível” média final de 12 valores (como ela própria costumava contar).

Estivera muitas vezes prestes a desistir. Quando chegava a casa à noite, depois de um duro dia de trabalho e das aulas em regime pós-laboral, atirava-se para cima da cama e adormecia quase instantaneamente. Muitas vezes nem sequer tinha forças para vestir o pijama.

No Técnico, o ambiente também não era fácil. Numa turma de trinta alunos/as havia apenas cinco mulheres. Ela era a mais velha. Foi-se tornando cada vez mais velha comparativamente aos/às colegas, à medida que foi deixando cadeiras por fazer por falta de tempo para se dedicar aos estudos.

Tinha trinta e um anos quando olhou para o seu diploma pela primeira vez. Emoldurou-o e pendurou-o no escritório, num local bem visível, para que já não houvesse quaisquer dúvidas sobre as suas competências e qualificações.

À força da necessidade, tornou-se uma mulher dura, de modos masculinos. Vestia sempre calças, camisa e blazer. Nunca usava saltos. Para além de não serem práticos para andar nas obras, achava que a fragilizavam por lhe darem um aspeto mais feminino.

Isto afetou negativamente as suas relações pessoais. Era uma empresária de sucesso e nem os fatos escuros de corte masculino conseguiam esconder a sua beleza e elegância. Tinha muitos pretendentes, mas era frequente as suas relações não durarem mais do que meia dúzia de meses. No início da relação, os seus namorados admiravam-na, cortejavam-na, mas rapidamente começavam a tentar controlá-la. E isso a Antonieta não permitia. Jamais.

As pressões sociais levaram-na a casar. Arriscou duas vezes, apenas para se divorciar duas vezes. Nunca quis ter filhos, pois nunca teve tempo nem disponibilidade para se dedicar à maternidade. Acabara por decidir que não perderia mais tempo à procura de um homem que a respeitasse e que não quisesse mandar nela. Desistiu, simplesmente, convencendo-se de que tal homem não existia.

A Antonieta estava com cinquenta e três anos de idade. Era quinze anos mais velha do que a Clara, mas admirava a sua capacidade de organização e de gestão de prioridades, por isso estava determinada a tê-la a trabalhar consigo. Tinha-lhe feito a primeira proposta havia já alguns meses, mas a Clara não lhe dera grande importância. Contudo, a Antonieta não era mulher de desistir facilmente e, no dia anterior, tinha voltado a insistir. Precisava de alguém de confiança a seu lado, em quem pudesse delegar algumas das suas responsabilidades para poder ficar com mais tempo livre. Queria, finalmente, gozar a vida. Desejava poder ir de férias durante duas ou três semanas seguidas e estar tranquila durante esse período. Queria ter tempo para ler e dizia que sempre sonhara em poder ir regularmente ao ginásio.

Há mais de trinta anos que trabalhava incessantemente para manter a empresa de pé. Fora obrigada a despedir gente quando, em 2008, se instalou a crise no setor da construção. No pico da crise, em 2012, vira-se obrigada a transformar o negócio, passando a dedicar-se à área da requalificação e reabilitação urbana e abandonando por completo a execução de novas edificações. Continuava a ter apenas homens a trabalhar nas obras. Com exceção da sua secretária e de uma contabilista, estava rodeada de homens, dos quais aprendeu a desconfiar ao longo da vida.

Chegara à conclusão de que apenas as mulheres acatavam as suas ordens e orientações sem questionar a validade das mesmas. Quase todos os homens com quem tinha trabalhado haviam desrespeitado as suas indicações. Alguns apenas ocasionalmente, outros com frequência. Por vezes era apenas por não gostarem de receber ordens de uma mulher… Era uma espécie de braço de ferro permanente e encoberto. Uma medição de forças constante da qual estava cansada e que lhe estava a sugar completamente as energias.

Por isso sentia que só poderia confiar totalmente numa mulher. E essa mulher era a Clara, que conhecera durante uma reunião com um empreiteiro e de quem gostara de imediato. Trabalharam juntas em inúmeras ocasiões e a Antonieta foi consolidando a opinião que formara inicialmente.

Ficara a saber que a Clara tinha casado cedo e que, por isso, optara por não ir para a Faculdade. Fizera um curso de secretariado e assessoria, com um excelente desempenho e uma carta de recomendação que lhe teria aberto qualquer porta, não fora ter engravidado logo de seguida.

A Clara tinha-lhe contado que se sentiu extraordinariamente feliz quando soube que estava grávida. Só tinha vinte e quatro anos, mas nada mais importava para além de trazer aquele ser são e salvo a este mundo. Dois anos depois nascia a segunda filha. Apesar de ser uma gravidez não planeada, continuava a sentir-se feliz, mas já não extraordinariamente feliz… Quando a sua primeira filha era bebé, o pai nunca se levantara de noite por causa de um choro, para lhe mudar a fralda ou para lhe dar o biberão. Tinha a certeza de que todas as dificuldades que enfrentara com a primeira filha se iriam repetir com a segunda. Teria de cuidar de ambas sozinha, mas não se deixou esmorecer. A família era a sua prioridade, a razão da sua vida.

O autocarro estava atrasado, mas nem tinha dado conta. Estava tão absorta nestes pensamentos que nem se tinha apercebido da agitação das pessoas que se acumulavam na paragem. Tinha tido sorte, chegara cedo e podia esperar sentada. De facto, naquele dia não tinha pressa e recebia o atraso do autocarro como um presente. O melhor presente que podia ter: tempo livre. Tempo para olhar para si, sem preocupações nem distrações.

Mergulhou novamente na sua reflexão.

Ainda que as suas vidas tivessem sido radicalmente diferentes, havia algo que as unia e lhes permitia entenderem-se facilmente: ambas haviam abdicado de metade de si próprias. Meias-mulheres por excesso de zelo unilateral…

A Antonieta não tinha conseguido constituir uma família por se ter dedicado incondicionalmente à empresa, para que o pai, onde quer que estivesse, pudesse orgulhar-se dela.

Por seu lado, a Clara não tinha conseguido ter sucesso profissional por nunca ter podido dedicar-se devidamente à sua carreira. Sempre tivera dificuldades em trabalhar horas extraordinárias e era-lhe impossível acompanhar as chefias em eventos de fim de semana. Recusara formações profissionais por se realizarem em regime pós laboral e nunca pudera participar em feiras internacionais. Tinha perfeita noção de que, profissionalmente, estava estagnada há vários anos. Nunca passaria da “cepa torta”. Sentia-se realizada como mãe e raramente pensava na sua carreira profissional.

A proposta da Antonieta obrigou-a a questionar essa perspetiva.

Seria mesmo uma mulher feliz? Sentia-se realmente realizada?

Como iria sentir-se daí a alguns anos, quando as filhas saíssem de casa?

A verdade é que sentia o coração aos pulos quando pensava naquele novo e aliciante desafio. Estava mais motivada do que nunca. Era muito gratificante saber que alguém reconhecia o seu trabalho (apesar de tudo).

Teria mais responsabilidades, mas também maior autonomia. Poderia desenvolver as suas competências de assessoria… algo que há muito desejava. O secretariado passaria para segundo plano e deixaria de ser uma mera executante das decisões de outros.

Se aceitasse o convite da Antonieta, teria de tomar decisões, correr riscos e, como é óbvio, trabalhar sem horário fixo, mas isso viria acompanhado de um salário muito mais alto e de algumas regalias bastante compensadoras. Acreditava que conseguiria gerir tudo para que a família não sofresse, mas, muito provavelmente, as filhas teriam de ficar mais tempo no colégio. A possibilidade de ter de as deixar dez ou doze horas entregues a “terceiros” era a única coisa que a angustiava.

Tinha ido para casa entusiasmada e ansiosa por contar ao seu marido. Estava feliz. Talvez no verão seguinte conseguissem ter dinheiro para irem os quatro passar férias à Madeira. Há muitos anos que desejava conhecer a Madeira.

Apesar de saber que o seu marido era um pouco machista e ciumento, nunca lhe passara pela cabeça que reagiria daquela forma. Era expectável que houvesse confronto por causa das horas a mais que teriam de pagar no colégio e esperava que a acusasse de ser má mãe por causa disso, mas a questão do ordenado…

Quando começou a contar-lhe a proposta que a Antonieta lhe fizera, ele ficou logo de mau humor. Começou pela carranca, mas a Clara já estava habituada às “caras feias” do marido e ignorou. Achava que lhe passaria quando lhe contasse sobre o ordenado e as restantes regalias financeiras, pois isso representaria uma grande melhoria na qualidade de vida da família. Poderiam proporcionar outras experiências às filhas.

Não podia estar mais enganada. Afinal não conhecia assim tão bem o seu marido. Estavam juntos há catorze anos e via à sua frente um homem completamente diferente daquele com quem pensava ter casado.

Quando ele se apercebeu de que a mulher iria ganhar bastante mais do que ele, a carranca transformou-se em fúria. Claro que não o assumiu assim tão claramente. Revelou-o por indiretas, acusando-a de estar a ser irresponsável como mãe, que iria deixar as filhas abandonadas, entregues a elas próprias. Sabe-se lá no que se poderiam meter, provavelmente em drogas e más companhias. O mais certo seria que os resultados escolares piorassem, que deixassem de ser boas alunas.

A Clara ainda sugeriu que se revezassem no apoio às filhas. Sairiam dos seus empregos mais cedo, em dias alternados, para poderem ir buscar as filhas ao colégio. Dia sim, dia não, cada um deles assumiria essa responsabilidade para bem das filhas.

Mas esta proposta não era aceitável para o marido da Clara. Alegava que ninguém no seu emprego compreenderia essa justificação. Que seria considerado um “frouxo” por estar a dar prioridade à família e seria alvo de chacota entre os/as colegas. De certeza que nunca mais seria aumentado ou promovido. A sua carreira acabaria no dia em que dissesse ao chefe que tinha de sair mais cedo para ir buscar as filhas ao colégio.

Acusara-a de estar a ser insensível e egoísta, que queria humilhá-lo ao considerar aceitar uma proposta que o obrigaria a mudar a sua postura profissional e, ainda por cima, com um ordenado superior ao seu. Seria a maior humilhação da vida dele.

 

Se soubesse que esta seria a reação do marido, a Clara nunca lhe teria contado a novidade antes de as filhas estarem a dormir. Ouviram isto tudo. Aliás, toda a vizinhança devia ter ouvido o marido aos berros, a chamar-lhe egoísta e insensível.

Deixou de lhe responder. Esperou que a ira passasse. Só queria que ele se calasse para poder ir deitar as filhas. Encontrou-as encolhidas, encostadas num canto do quarto de dormir que partilhavam. Felizmente as suas filhas davam-se bem, apoiavam-se e reconfortavam-se mutuamente quando ouviam os pais a discutir. Ficaram aliviadas quando viram a mãe entrar no quarto. Abraçaram-na assim que a viram. Um longo e carinhoso abraço, silencioso, mas revelador. Que exemplo estava ela a dar às filhas?

Chegou finalmente o autocarro. Não havia lugares livres, teria de ir em pé. Não importava, já tinha conseguido descansar um pouco enquanto estivera sentada na paragem.

A viagem de autocarro duraria pouco mais de quarenta minutos, mas aquela viagem já não era importante.

No momento em que entrava naquele autocarro, a Clara dava-se conta de que se tratara de um providencial atraso, uma prenda do acaso que lhe permitira ver tudo com clareza. Naquele instante iniciava outra viagem, essa sim era importante e seria a mais longa e difícil viagem da sua vida.

Estava na hora de mudar de rumo. As suas filhas já estavam no 2.º ciclo. Eram meninas responsáveis e ganhavam autonomia a cada dia que passava. Já não precisavam tanto da sua ajuda para estudar ou fazer os trabalhos de casa. Podia tirá-las do colégio e inscrevê-las numa escola pública. Encontraria um bom ATL para as ir buscar à escola e apoiar enquanto esperavam pela mãe.

A decisão estava tomada e sentia-se tranquila. Tinha a certeza de que conseguiria ultrapassar qualquer obstáculo. Haveriam de sobreviver.

Tinha quase quarenta anos e sabia perfeitamente que aquela poderia ser a sua última oportunidade.

Era altura de pegar nas rédeas e conduzir a sua própria vida. Tinha de o fazer, por si e pelas suas filhas.

Agosto de 2018

Criado para o Concurso Literário Intermunicipal sobre Igualdade de Género 2018 -“Uma Ponte Para a Igualdade” (Odemira)

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