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Um pássaro sem poiso

Palavras soltas, livres, voando por aí

Um pássaro sem poiso

Palavras soltas, livres, voando por aí

16.08.24

Cegueira


Isa Nascimento

Há gente que passa sem nunca ver

Gente que pensa ver, mas não vê

Gente cega acreditando ver

Gente que olha e nada vê

 

Há gente que passa pela vida sem dar conta

Gente que está viva, mas não vive

Gente que vive num eterno faz de conta

Gente que somente sobrevive

 

Há gente que da vida foge

Sem sequer saber porque foge

 

Toda essa gente navega à deriva

Inconsciente de navegar sem norte

E da aleatoriedade de uma existência fugitiva

Entregue à sorte

 

Maio de 2024

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10.08.24

Há gatos que não gostam de sol


Isa Nascimento

Há assuntos difíceis.

Evitam-se. Por vergonha. Porque dá azar. Porque fazem sofrer. Porque nos atiram à cara a dura realidade que não queremos aceitar.

 

Há filhos que precisam de ir ao psiquiatra. Que fumam – erva ou tabaco, tanto faz -, comem o que não devem, ou não comem nada; que não gostam de ler, não se licenciaram, têm dificuldade em encontrar um trabalho que os satisfaça.

Há filhos que não são como desejávamos e têm dificuldade em ser felizes. Às vezes fazemos cedências para encontrar um equilíbrio familiar mínimo. «Se fosse comigo, não o permitiria.» Tens a certeza?

Se tivesses um/a filho/a homossexual, como lidarias com isso? «Prefiro não pensar nisso.»

Há filhos que se afastam de nós, que não partilham os nosso valores, que seguem maus caminhos…

E quase sempre não foi «culpa» nossa.

 

À medida que envelhecemos torna-se mais difícil reter os puns. Saem sem aviso prévio. É chato quando são só barulhentos. É duplamente chato se também cheirarem mal.

Porém, é natural. Tão natural como a flacidez das carnes e a perda de visão e audição.

A velhice torna-nos mais feios, menos capazes, traz-nos doenças.

Se as rugas são inevitáveis com o avançar da idade, a antipatia, a revolta e a crítica constante não.

Os filhos não têm obrigação de tomar conta de nós quando formos velhos. Podem estar do outro lado do mundo a seguir a sua vida, como nós seguimos a nossa.

Temos de nos preparar para a incapacidade e ter a noção de que poderemos estar sozinhos no final da nossa vida.

Mais vale rirmo-nos das nossas fraquezas do que nos revoltarmos por causa delas.

Desejar longevidade recusando a senescência é só estúpido.

Às vezes, a morte dos pais é um alívio – porque nos infernizaram a vida ou porque já não aguentávamos vê-los sofrer. Também por isso é normal desejarmos a nossa própria morte. Porque já não aguentamos existir.

É natural cansarmo-nos de existir.

 

A morte aproxima-se um pouco mais todos os dias de manhã.

Se vivermos o suficiente, seremos a pessoa mais velha da família. E já teremos perdido muitos amigos e familiares pelo caminho. Com sorte, não teremos perdido nenhum filho.

Eu não desejo uma vida longa. «Como podes dizer isso?»

Não sou louca nem desejo morrer amanhã. Os meus filhos ainda precisam de mim. O meu pai também. De resto, não tenho assuntos pendentes.

Tenho a consciência tranquila e é em paz que penso na minha morte, iminente ou longínqua.

Não acredito que pensar nela a aproxime ou afaste de mim.

Sempre que penso nela dou mais valor à vida e à presença daqueles que amo. Por isso não gosto de adiar encontros. Pode já não haver tempo depois…

Porque não falar da morte?

 

Não há relações perfeitas.

Não há vidas perfeitas.

Todos erramos e devemos pedidos de desculpas.

 

Acredito que estamos a dar cabo do mundo com o excesso de viagens e de consumo. Já não há vida selvagem ou paisagem a salvo da intrusiva presença humana.

Cada vez gosto menos de viajar, principalmente de avião.

Portugal é suficiente para mim. Há sempre gente estupefacta a fitar-me quando digo isto.

«Como é possível não quereres viajar? É tão bom!!!»

Não, não é tão bom. Porque também tem muito de mau: fazer e desfazer malas, stress com vistos, voos cancelados, bagagem que fica em terra, filas intermináveis para o check-in, horas de espera, supermercados e restaurantes apinhados, pequenas localidades com dez vezes mais gente do que têm capacidade para comportar.

Não há qualidade de vida nem de trabalho para os residentes. A experiência turística vale mesmo a pena assim? Ou o álbum de fotografias importa mais do que tudo o resto?

É normal que haja manifestações contra o turismo e pessoas a colocarem excrementos em chaveiros de alojamento local?

É normal que, numa praia do Algarve, haja tantos caiaques na água que as pessoas não têm onde nadar?

Não, não é normal. Há um enorme desequilíbrio na forma como desfrutamos das nossas férias.

«Temos de aproveitar para ir a Veneza enquanto não se afunda.»

Que se lixem as gerações vindouras!

Essas gerações que reclamam contra os combustíveis fósseis, vandalizam obras de arte e fazem parar o trânsito, mas depois gastam rios de dinheiro em bilhetes e viagens para irem a concertos dos seus cantores favoritos no outro lado do mundo, ou em gadgets, ou em copos…

 

 

E é assim que vamos.

Reclamamos, mas não fazemos diferente daqueles que criticamos.

Sabemos que o mundo está a aquecer e que os corais estão a morrer, por isso apressamo-nos a ir vê-los antes que fiquem todos brancos.

Somos veganos porque os animais são seres vivos com sentimentos, mas desperdiçamos a fruta e os legumes que temos à descrição em buffets de hotéis. A vida animal valerá mais do que a vegetal?

 

Habituámo-nos a ter muito e rápido.

Não estamos dispostos a prescindir nem a esperar.

«Já não há nada a fazer. O aquecimento global é irreversível. Mais vale aproveitar.»

 

Há assuntos incómodos. Que evitamos abordar porque pesam demasiado na nossa consciência.

E contra mim falo, que tantas vezes me deixo levar pela maré.

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