O presente escondido | coletâneas Chiado Books
Dos diversos natais passados em casa dos meus pais, recordo-me essencialmente das decorações em papel que eu e a minha irmã espalhávamos pela casa toda. As estrelas de papel metalizado, feitas na escola nas semanas anteriores, coladas em cada uma das portas. As longas correntes de argolas feitas de tiras de jornal ou revistas penduradas nas paredes, em todas as divisões da casa, sobre os quadros e contornando o espelho que recebia os visitantes no hall de entrada. Os anjos dourados sobre os móveis.
Lembro-me também das horas passadas na preparação dos doces, no dia 24 de dezembro. Cumpria-se sempre a tradição, enchendo a mesa de pratos com filhoses, sonhos, rabanadas, bolo inglês, broinhas de mel, frutos secos… Foi num Natal qualquer que aprendi a amassar, ajudando a minha mãe a preparar a massa das filhoses de abóbora e da tarte de maçã que o meu pai adorava. Pela mesma altura soube o que era “tender” a massa, que significa “estender” a massa depois de levedada, com um rolo ou à mão, para depois a cortar nos formatos desejados para os biscoitos ou para as filhoses.
No Natal, a nossa casa cheirava sempre bem, a mesa era farta e a alegria contagiante. Contudo, a fartura não chegava aos presentes. Com quatro filhos de idades muito próximas, na década de 80 em que a abundância de coisas não estava ainda disponível para a classe média, só havia um presente para cada um de nós.
Por isso, a ansiedade da espera aguçava bastante a nossa enorme curiosidade de crianças, levando-nos, a mim e aos meus três irmãos, a imaginar fervorosamente o que estaria à nossa espera na noite de Consoada. Houve um Natal em que não conseguimos resistir à curiosidade. Pressentimos que havia algo de especial nesse ano e decidimos investigar, aproveitando a distração da minha mãe na cozinha.
Descobrimo-lo rapidamente, no fundo do guarda-fatos do quarto dos meus pais, ainda por embrulhar. Era um disco de vinil, em formato single, com a história “A Princesa e a Ervilha”. Nunca tínhamos visto um disco que contava uma história. Conhecíamos os das canções infantis, do Zeca Afonso, da Amália e pouco mais. Ficámos embevecidos a olhar para a capa, admirados com as ilustrações e desejosos de o ouvir. Estávamos tão enlevados que nem demos conta de que a minha mãe já não estava na cozinha. Foi encontrar-nos com “a boca na botija”… mas não se zangou. Preferíamos que se tivesse zangado. Acho que o sentimento de culpa teria sido bem mais leve.
Em vez de se zangar, a minha mãe ficou simplesmente triste. Tão triste, que toda a sua tristeza transbordou para os nossos corações, onde ficou impregnada durante o resto da tarde, ensombrando o jantar e indo deitar-se connosco nessa noite. Perdurou durante muitos dias depois, de tal forma que nunca mais cedemos à tentação da curiosidade de descobrir os presentes de Natal antes do tempo.
O único Natal que retive na memória estará na origem da minha paciência.
Autor: Isa Nascimento
Texto incluído em:
"II Volume da Colectânea de Contos de Natal: Natal em Palavras", Chiado Books. Dezembro de 2019