O primeiro Natal | coletâneas Chiado Books
Quando acordou, estranhou a cama vazia.
Todos os dias se perguntava por que motivo estaria vazia. A noite tinha sempre esse efeito, de lhe proporcionar um esquecimento apaziguador. Notou que naquele dia doeu um bocadinho menos quando se lembrou do motivo. Tirou, finalmente, a aliança. Era uma tolice esperar pela assinatura dos papéis. Na prática já estavam divorciados e, de repente, aquele símbolo de união deixara de fazer sentido.
Enquanto olhava para o dedo marcado e estranhava a ausência daquele objeto que já fazia parte da anatomia da sua mão, refletia sobre as diferenças entre os homens e as mulheres.
Um género sobrevalorizando-se enquanto desvaloriza o outro, com mais ou menos humor, demasiadas vezes com um franco mau gosto.
Nunca durante o seu casamento vira tão claramente as diferenças que os distanciavam um do outro. Era tão óbvio que a separação seria inevitável… apenas uma questão de tempo.
Recordou a sua relação em retrospetiva e veio-lhe à ideia a imagem de uma bomba-relógio.
Era isso, uma bomba relógio prestes a explodir há já vários anos…
Teve a sensação de que acabava de começar uma nova era na sua vida. A era da família desmembrada, de ver os filhos a fazerem o saco semana após semana, a saltitarem constantemente de casa em casa. Não haveria mais almoços de domingo em família, nem viagens nas férias de verão. Esforçava-se para não pensar no próximo aniversário.
Aquele era o seu primeiro Natal da nova era, tinha de se levantar e, acima de tudo, fazer cara alegre. Não poderia estar triste quando fosse acordar os filhos. Era dia de consoada e eles mereciam que fosse especial.
No dia de Natal partiriam logo de manhã. Esse pensamento foi ainda mais devastador do que acordar numa cama vazia. Sentia o peso avassalador da antecipação da solidão e da perda.
Sentia ciúmes pela vida de todos aqueles que juntariam a família e se alegrariam no Natal.
Com os rapazes, aparentemente, estava tudo bem. Ansiavam pela duplicação de mimos e prendas que receberiam dos pais para os compensar pelo falhanço do projeto familiar. Ainda bem que os jovens são assim. Conseguem ver mais facilmente o lado positivo das coisas.
Animam-se perante a expectativa de novas oportunidades em vez de se entristecerem com o passado fracassado.
Desejou que não houvesse Natal, que nunca tivesse havido Natal. Seria menos uma ocasião de sofrimento, menos recordações a lembrar e menos fotografias a esconder.
Nada fazia sentido naquele momento. Sentia a cabeça a rebentar enquanto olhava para a sua aliança, atirada, sem propósito, para cima da mesa de cabeceira.
Não havia nada a fazer. Apenas esperar que no dia seguinte doesse um pouco menos e que conseguisse celebrar com alegria o dia da família (era assim que via o Natal) apenas com os seus pais. No ano seguinte tudo seria diferente e mais fácil. Sorriu. Olhou para a cama e decidiu que passaria a dormir no centro.
Autor: Isa Nascimento
Texto incluído em:
"Colectânea de Contos de Natal: Natal em Palavras", Chiado Books. Dezembro de 2018